terça-feira, 4 de maio de 2010

França agora divide seu Idioma com o Mundo

Michael Kimmelman


As palavras saíam tão rapidamente da boca de Éric Zemmour que ele tropeçava sobre elas. Ele estava descrevendo seu livro mais recente, "French Melancholy" (Melancolie Française, Fayard), que entrou para a lista dos mais vendidos na França.

"O fim do poder político francês está sendo acompanhado pela morte da língua francesa", disse. "As pessoas da elite não ligam mais: todas falam inglês. E a classe trabalhadora - não só os imigrantes - tampouco se importa em preservar a integridade do idioma."

Zemmour é um notório criador de problemas. Recentemente, seus detratores defenderam sua demissão do "Le Figaro", jornal para o qual trabalha, pelas declarações incendiárias que fez sobre negros e árabes franceses em um programa de TV. Para ele, a França, devido à imigração e a outras influências externas, perdeu o contato com suas origens na Antiguidade romana, sua "gloire" nacional, sua cultura histórica, em cujo cerne está a língua francesa.

Muitos veem Zemmour como extremista, mas ele não é o único a pensar assim. O presidente Nicolas Sarkozy reclamou recentemente do "esnobismo" de diplomatas franceses que ficam felizes em falar "inglês" em vez do francês.

Hoje, o francês é falado sobretudo por pessoas não francesas; mais de 50% delas são africanas. Os francófonos têm probabilidade maior de serem haitianos e canadenses, argelinos e senegaleses, imigrantes da África, do sudeste asiático e do Caribe que se fixaram na França.

Qual é o significado da cultura francesa, então, nesta época em que existem cerca de 200 milhões de falantes do francês no mundo, sendo que apenas 65 milhões deles são de fato franceses?

A globalização intensificou o desejo de mais pessoas de se diferenciarem umas das outras, e a língua é há muito tempo uma maneira evidente de fazê-lo. No Canadá, os habitantes do Québec tentaram proibir placas e outrs expressões públicas escritas em outra língua senão o francês. Separatistas bascos vêm assassinando espanhóis em nome de sua independência política, linguística e cultural, do mesmo modo como Franco encarcerava quem falasse basco ou catalão.

Para Abdou Diouf, ex-presidente do Senegal e atual secretário-geral da Organização Internacional da Francofonia, a língua francesa está florescendo mais que nunca. "O futuro do idioma hoje está na África", disse.

Na África e em outros lugares - da Bélgica ao Benin, do Líbano à Santa Lúcia, de Seychelles à Suiça, do Togo à Tunísia -, o francês é só um entre vários idiomas falados. Ou seja: para os escritores dessas regiões, o francês é uma escolha e não necessariamente assinala lealdade - política, cultural ou outra - à França.

Diferentes grupos raciais e étnicos na França têm erguido a voz em defesa de seus direitos e da afirmação de suas culturas. A eleição de Barack Obama nos EUA acelerou o processo, ao destacar quão poucos negros e árabes já chegaram a postos políticos na França. "O mundo mudou" disse Nancy Huston, romancista nascida no Canadá e radicada em Paris. "Após a guerra, os escritores franceses rejeitaram a idéia da narrativa, porque Hitler e Stálin eram contadores de histórias, e parecia ingenuidade acreditar em histórias. Por isso, eles se voltaram mais à teoria e ao absurdo. Os franceses se negaram até a contar histórias sobre sua própria história, incluindo a guerra na Argélia, que, como toda a história, não pode ser digerida de fato enquanto não for convertida em grande literatura. [Mas] a literatura francófona não vem dessas origens. Ela ainda narra histórias."

Yasmina Khadra é um romancista argelino cujos livros são best-sellers, mas cujo nome real é Mohammed Moulessehoul, 55. Ex-oficial do Exército argelino que lutou contra os franceses e hoje vive em Paris, ele escreve romances críticos ao governo argelino e os assassina com o nome de sua mulher, que começou a usar como psedônimo porque militares na Argélia censuraram sua obra.

"Aos 15 anos de idade, após ler Camus em francês", contou "decidi torna-me romancista na língua francesa, em parte porque queria dar uma resposta a Camus, que escrevera sobre uma Argélia na qual não havia árabes. Quis escrever na língua dele para dizer 'eu estou aqui, eu existo', e também porque amo o francês, apesar de ainda ser árabe."

"Paris ainda receia um escritor francês que fica conhecido no mundo sem uma bênção", acrescentou Moulessehoul. "Ao mesmo tempo, sou visto como traidor por escrever em francês."

"Em última análise, a cultura sempre diz respeito à política. Sou escritor francês e escritor argelino. Mas a verdade maior é que sou as duas coisas."


Folha de São Paulo, 3 de maio de 2010

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