Francisco Merçon
A glória de um escritor quase sempre é celebrada postumamente, quando então a neblina que nos impede a visão já baixou e a luz que brilha no horizonte tem a medida exata para iluminar a paisagem sem o risco de cegar o olhar daquele que a observa. Mas há aqueles escritores que a vivem discretamente ao longo de sua existência e a celebram com toda uma geração. É o caso do português José Saramago cuja morte, no dia 18 de junho, o retirou de cena, para a tristeza de muitos amantes da literatura.
Saramago se consagrou entre nós, brasileiros, e por todo o mundo, depois de ter sido premiado em 1998 com o Nobel de Literatura. Na época, o representante da Academia Sueca divulgou a premiação pronunciando à imprensa que Saramago é aquele que “com parábolas portadoras de imaginação, compaixão e ironia torna constantemente compreensível uma realidade fugidia”. Referia-se, assim, ao profundo conhecimento do escritor no entendimento das contradições da sociedade e dos homens, as quais nos apresentava, a nós leitores, literariamente por meio de sua vasta obra. Poderíamos, ainda, acrescentar que aquele que “torna compreensível uma realidade fugidia” é alguém que nos faz enxergar o que a princípio escapa à visão imediata.
A “Cegueira Branca”
Metáfora cara ao escritor, a “visão” ganhou lugar central no romance "Ensaio sobre a cegueira", a meu ver, a sua obra que melhor se aproximou desse limite em que as nossas contradições mais recônditas vêm à tona e se nos tornam insuportáveis. Nesse romance, um homem fica cego de repente. É então o início de uma epidemia que se espalha vertiginosamente por toda a parte, contaminando a todos. Os cegos são então confinados num hospital abandonado, sob o regime de quarentena, e passam a ter de conviver uns com os outros enquanto aguardam esperançosos por uma possível cura do mal que os acometera. Mas o completo desconhecimento de uma provável causa para a “cegueira branca” parece advertir-nos de que se trata de um mal que brota de dentro do ser humano. Algo que habita a nossa natureza, em sua origem mais remota e, por isso, talvez, antropológica, numa região do ser inacessível ao sentido. A essa cegueira, de origem desconhecida, soma-se uma outra, de natureza diversa, pois que é fruto do estado de completo abandono em que se encontram os confinados, quando, nestes, a esperança se transforma em angústia perturbadora que destrói as regras básicas de convivência humana, e com isso a configuração social do ambiente passa a se assemelhar cada vez mais à desarmonia indisciplinada de uma horda.
Os sentidos sugeridos pela expressão “cegueira branca” são de tal modo explorados no romance com grande riqueza e profundidade que um curto artigo como este não poderia dar conta de examinar-lhe todas as significações. Mas a própria expressão nos orienta para dois percursos de leitura que caminham paralelos no romance. Ao lado da “cegueira” entendida como perda da faculdade sensório-perceptiva, é preciso também considerá-la num sentido metafórico: perda da faculdade crítica do juízo e ausência completa de lucidez. Quanto ao especificador “branca”, este sugere que se trata de uma visão “desbotada”, sem cor, em que se perdem os traços que delimitam as formas visíveis, inteligíveis e também afetivas que dão sentido à vida, ao mundo e a nós mesmos. A expressão é, portanto, uma síntese da perda da significação, de quando as fronteiras do sentido se diluem. O resultado disso é diluição da própria noção de ser humano, pois que para este, como para nenhum outro animal, o mundo é um mundo que existe somente porque significa.
A maestria de Saramago, nesse romance, se mede não somente pelo conteúdo da história – que nos leva a uma reflexão sobre a natureza humana e seus limites –, mas também no modo como ela é narrada. As três categorias que fazem parte das narrativas, de modo geral (categorias de pessoa, tempo e espaço), são articuladas pelo escritor com a finalidade de perturbar a visão do leitor: os personagens são na sua maior parte anônimos, não sabemos quando nem exatamente onde se passa a história. O foco narrativo é, por meio desse e de outros recursos discursivos, limitado, fazendo com que o leitor também seja, em certa medida, acometido pela cegueira. Na adaptação da obra de Saramago para o cinema, o diretor brasileiro Fernando Meirelles obteve efeito semelhante ao privilegiar uma fotografia em que prevalece o excesso de cor branca, dificultando ao expectador a percepção de detalhes da cena, e o enquadramento da câmera que fragmenta as cenas, escondendo mais que revelando.
Imaginação e Realidade
A “visão” como metáfora relacionada ao conhecimento que permite ao homem o acesso à verdade está na origem do pensamento filosófico do Ocidente. Esse sentido já fora explorado por Platão, no “Mito da caverna”, alegoria que se encontra no livro A República. O mito “conta” de maneira alegórica que o homem ascende ao conhecimento da verdade somente quando abandona a caverna. Assim, a verdade só lhe seria revelada por meio do afastamento do homem de seus afazeres cotidianos e de seu convívio social, ambos tidos pelo filósofo como meio dotado de obscuridade. Mas para Saramago, esse conhecimento, ao contrário, jamais pode ser sequer vislumbrado fora das questões do homem e do meio que o cerca. Assim como para Marx, é o homem em sociedade, com todas as suas contradições, que interessa ao escritor português. Podemos então dizer que a imaginação, em Saramago, é um poderoso operador de transformação da realidade. E essa capacidade do escritor em fazer-nos compreendê-la por meio das suas palavras revela o poder da literatura como operador dessa transformação.
Quando morre um ser humano, não é apenas um corpo que não está mais presente, perde-se também certo modo de ver, imaginar e transformar o mundo. Instaura-se nele um vazio. Mas quando esse ser humano é um escritor, suas palavras permanecem como corpo presente e com elas permanece também seu poder de transformação. E se não fosse Saramago um marxista declarado, eu diria que se trata de um “ensinamento quase metafísico”, pois que nele opera fortemente a imaginação, ancorada no real, mas ainda assim “imaginação”.
Saramago se consagrou entre nós, brasileiros, e por todo o mundo, depois de ter sido premiado em 1998 com o Nobel de Literatura. Na época, o representante da Academia Sueca divulgou a premiação pronunciando à imprensa que Saramago é aquele que “com parábolas portadoras de imaginação, compaixão e ironia torna constantemente compreensível uma realidade fugidia”. Referia-se, assim, ao profundo conhecimento do escritor no entendimento das contradições da sociedade e dos homens, as quais nos apresentava, a nós leitores, literariamente por meio de sua vasta obra. Poderíamos, ainda, acrescentar que aquele que “torna compreensível uma realidade fugidia” é alguém que nos faz enxergar o que a princípio escapa à visão imediata.
A “Cegueira Branca”
Metáfora cara ao escritor, a “visão” ganhou lugar central no romance "Ensaio sobre a cegueira", a meu ver, a sua obra que melhor se aproximou desse limite em que as nossas contradições mais recônditas vêm à tona e se nos tornam insuportáveis. Nesse romance, um homem fica cego de repente. É então o início de uma epidemia que se espalha vertiginosamente por toda a parte, contaminando a todos. Os cegos são então confinados num hospital abandonado, sob o regime de quarentena, e passam a ter de conviver uns com os outros enquanto aguardam esperançosos por uma possível cura do mal que os acometera. Mas o completo desconhecimento de uma provável causa para a “cegueira branca” parece advertir-nos de que se trata de um mal que brota de dentro do ser humano. Algo que habita a nossa natureza, em sua origem mais remota e, por isso, talvez, antropológica, numa região do ser inacessível ao sentido. A essa cegueira, de origem desconhecida, soma-se uma outra, de natureza diversa, pois que é fruto do estado de completo abandono em que se encontram os confinados, quando, nestes, a esperança se transforma em angústia perturbadora que destrói as regras básicas de convivência humana, e com isso a configuração social do ambiente passa a se assemelhar cada vez mais à desarmonia indisciplinada de uma horda.
Os sentidos sugeridos pela expressão “cegueira branca” são de tal modo explorados no romance com grande riqueza e profundidade que um curto artigo como este não poderia dar conta de examinar-lhe todas as significações. Mas a própria expressão nos orienta para dois percursos de leitura que caminham paralelos no romance. Ao lado da “cegueira” entendida como perda da faculdade sensório-perceptiva, é preciso também considerá-la num sentido metafórico: perda da faculdade crítica do juízo e ausência completa de lucidez. Quanto ao especificador “branca”, este sugere que se trata de uma visão “desbotada”, sem cor, em que se perdem os traços que delimitam as formas visíveis, inteligíveis e também afetivas que dão sentido à vida, ao mundo e a nós mesmos. A expressão é, portanto, uma síntese da perda da significação, de quando as fronteiras do sentido se diluem. O resultado disso é diluição da própria noção de ser humano, pois que para este, como para nenhum outro animal, o mundo é um mundo que existe somente porque significa.
A maestria de Saramago, nesse romance, se mede não somente pelo conteúdo da história – que nos leva a uma reflexão sobre a natureza humana e seus limites –, mas também no modo como ela é narrada. As três categorias que fazem parte das narrativas, de modo geral (categorias de pessoa, tempo e espaço), são articuladas pelo escritor com a finalidade de perturbar a visão do leitor: os personagens são na sua maior parte anônimos, não sabemos quando nem exatamente onde se passa a história. O foco narrativo é, por meio desse e de outros recursos discursivos, limitado, fazendo com que o leitor também seja, em certa medida, acometido pela cegueira. Na adaptação da obra de Saramago para o cinema, o diretor brasileiro Fernando Meirelles obteve efeito semelhante ao privilegiar uma fotografia em que prevalece o excesso de cor branca, dificultando ao expectador a percepção de detalhes da cena, e o enquadramento da câmera que fragmenta as cenas, escondendo mais que revelando.
Imaginação e Realidade
A “visão” como metáfora relacionada ao conhecimento que permite ao homem o acesso à verdade está na origem do pensamento filosófico do Ocidente. Esse sentido já fora explorado por Platão, no “Mito da caverna”, alegoria que se encontra no livro A República. O mito “conta” de maneira alegórica que o homem ascende ao conhecimento da verdade somente quando abandona a caverna. Assim, a verdade só lhe seria revelada por meio do afastamento do homem de seus afazeres cotidianos e de seu convívio social, ambos tidos pelo filósofo como meio dotado de obscuridade. Mas para Saramago, esse conhecimento, ao contrário, jamais pode ser sequer vislumbrado fora das questões do homem e do meio que o cerca. Assim como para Marx, é o homem em sociedade, com todas as suas contradições, que interessa ao escritor português. Podemos então dizer que a imaginação, em Saramago, é um poderoso operador de transformação da realidade. E essa capacidade do escritor em fazer-nos compreendê-la por meio das suas palavras revela o poder da literatura como operador dessa transformação.
Quando morre um ser humano, não é apenas um corpo que não está mais presente, perde-se também certo modo de ver, imaginar e transformar o mundo. Instaura-se nele um vazio. Mas quando esse ser humano é um escritor, suas palavras permanecem como corpo presente e com elas permanece também seu poder de transformação. E se não fosse Saramago um marxista declarado, eu diria que se trata de um “ensinamento quase metafísico”, pois que nele opera fortemente a imaginação, ancorada no real, mas ainda assim “imaginação”.
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