quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Beckett e a Impossibilidade de Narrar

Francisco Merçon


Os debates sobre a impossibilidade de narrar do narrador contemporâneo têm Samuel Beckett como uma das figuras mais representativas. Questão ainda aberta, sobre a qual ninguém até agora ousou “bater o martelo”, essa suposta impossibilidade tem como sua contraparte uma forma específica de narrar, cujo modelo é o romance realista dos séculos XVIII e XIX. Independente das posições tomadas a esse respeito, o fato é que a obra de Beckett difere muito, em seu aspecto formal, do romance dito realista.

Basta, para confirmá-lo, examinarmos o modo peculiar pelo qual o autor trabalha a dimensão figurativa dos seus textos: no romance O despovoador (Dépeupleur, Minuit), por exemplo, corpos anônimos se movem no interior de um cilindro desprovido de janelas ou de qualquer outro tipo de saída. Nesse ambiente hermeticamente fechado do cilindro os corpos se movimentam subordinados a regras precisas. Tudo se passa como se o destino desses corpos estivesse traçado pelo próprio sistema aí criado. Mas “no último estado do cilindro”, como diz o próprio narrador, um corpo caminha em direção a uma mulher que se mantinha sentada, em posição fixa, e que por isso servia de ponto de referência para a orientação dos corpos que se movimentavam dentro do cilindro. Ele se ajoelha diante da mulher, afasta de seu rosto os cabelos, tateia-lhe os olhos e depois inclina para baixo a cabeça. Nesse momento, instaura-se um forte silêncio, “um silêncio mais forte que todas essas fracas respirações reunidas”, pois foi a primeira vez que em meio a esse povo, habitante do cilindro, um homem abaixou a cabeça. E o romance termina, assim, enigmaticamente, com esse gesto simbólico de abaixar a cabeça.

No romance Companhia (Compagnie, Minuit), por sua vez, uma das características singulares é o traço de indeterminação que marca a categoria discursiva de pessoa: um sujeito de identidade indefinida (“alguém, deitado de costas no escuro”) se encontra num ambiente em que a ausência de luz toma conta de todo o espaço. A cena que se desenvolve a partir daí inclui, ainda, mais dois participantes, a saber, “uma voz” que se dirige a esse sujeito, e um terceiro, o “intruso”, espécie de testemunha também anônima que observa o homem deitado de costas no escuro e ouve a voz a ele dirigida, sem, no entanto, poder falar “a quem e de quem fala a voz”, podendo apenas observar e imaginar. Desprovido quase totalmente de memória e de suas faculdades intelectivas, esse “alguém” ouve a voz que lhe narra supostas lembranças de seu passado, de sua infância. Aos poucos, no transcorrer da narrativa, tomamos mais conhecimento da história desse “alguém”, que por fim termina sozinho. De modo bastante simplificado, poderíamos dizer que esse romance é quase uma operação matemática: “alguém” que quer companhia, mas termina sozinho (ou seja, quer “mais que um”, mas termina “menos que um”, uma vez que, no final, não chega à altura da condição de indivíduo, no sentido etimológico de “indivisível”).

Em ambos os casos, na escolha formal de Beckett há nitidamente uma crítica implícita às formas do romance já constituídas. No romance O despovoador, não é o espaço da realidade do cotidiano que constitui a configuração espacial da história. O narrador nos convida a conhecer uma experiência real, ainda que vivida no interior de um cilindro habitado por corpos anônimos. Ou seja, não se trata de uma imaginação do narrador. É antes uma possibilidade discursiva. O próprio narrador modaliza a experiência ao fazer uso de expressões que indicam tratar-se de uma possibilidade discursiva, como “talvez”, “Não é exatamente assim”, “não é possível prever o que serão”, “se tal noção for mantida” etc. Trata-se, portanto, de uma realidade da própria obra, uma realidade da linguagem, e é essa que interessa ao escritor Samuel Beckett, ainda que seja para posteriormente pensarmos a nossa realidade a partir do universo de sentido que o autor criou com a sua obra.

Já no romance Companhia, há uma interessante experiência em torno da noção de “subjetividade”. Habituados a pensá-la como sendo autossuficiente e una, talvez por causa do legado cartesiano do cogito, ergo sum de um sujeito seguro de sua própria e inabalável existência, estranhamos a cisão que Beckett opera no sujeito: o narrador só narra (a “voz”), o narratário (o “alguém) só escuta e o observador (o “intruso”) só observa, embora os três estejam um ao lado do outro compartilhando o mesmo espaço. Se o compararmos com o narrador de Proust, por exemplo, veremos que, ao contrário do narrador beckettiano, Marcel encarna as três funções, de narrador, de narratário e de observador. Enquanto Proust opera pela síntese, Beckett opera pela análise.

Mas, paradoxalmente, essa ruptura radical com a tradição do romance é o que insere Beckett na própria tradição literária ou mesmo artística. É que mediante uma observação à distância das escolhas formais dos escritores ao longo dos séculos, podemos notar que elas se transformam sem que as causas nos sejam muito claras. Se imaginarmo-nos no alto de uma montanha, de onde podemos admirar o mar liso de nuvens que se forma antes do nascer do sol, em meio às quais desponta aqui e ali algum pico, notamos que é preciso aguardar um certo tempo até que o sol comece a dissipá-las e nos faça ver que os picos são apenas saliências de uma cadeia de montanhas. Do mesmo modo, leva tempo até que autores como Beckett possam ser vistos como parte dessa imensa cadeia narrativa que é a nossa tradição.


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